Erro

"Saúde Mental": uma perspectiva psicanalítica

Postado por Laís Comini em 11/07/2025 08:49


Para falar em saúde mental, é preciso começar por uma torção. Não se trata de perguntar o que é saúde mental, mas de perguntar: para quem, em que contexto, com que linguagem, com que escuta? Porque saúde mental, na forma como circula hoje, tornou-se um significante mestre — desses que organizam discursos, políticas, afetos, mas que, justamente por isso, carregam uma opacidade estrutural.

Saúde mental virou uma espécie de novo ideal do eu: ser saudável mentalmente é ser funcional, produtivo, emocionalmente regulado, socialmente adaptado, sexualmente ativo, e, de preferência, feliz. Mas o que a psicanálise nos ensina é que esse ideal, como todo ideal, é também uma forma de violência simbólica. Porque ele opera por exclusão: exclui o sofrimento que não se encaixa, o desejo que não se conforma, o sintoma que não se resolve.

A psicanálise não parte da ideia de um sujeito saudável que adoece. Ela parte da ideia de um sujeito que é estruturalmente dividido. Um sujeito que não é uno, que não é transparente a si mesmo, que é atravessado pela linguagem, pelo desejo, pelo gozo. Um sujeito que não se constitui sem o Outro, mas que também não se reduz ao Outro. E é por isso que, para nós, saúde mental não é um estado, mas uma posição. Uma posição ética diante do próprio sofrimento. Uma posição que implica escutar o que em nós não se adapta, o que em nós insiste, o que em nós se repete. A saúde mental, nesse sentido, não é o oposto da loucura — ela é a forma como cada sujeito lida com a sua própria dose de loucura.

Freud já nos dizia que o normal é uma ficção estatística. Que o sintoma não é um erro, mas uma solução. Que o sofrimento psíquico não é um defeito, mas uma formação de compromisso. E Lacan vai mais longe: ele nos mostra que o sujeito é efeito do significante, que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, e que o gozo — esse excesso que escapa à simbolização — é parte constitutiva da experiência subjetiva. O que isso quer dizer, na prática? Quer dizer que não há saúde mental sem sintoma, não há sujeito sem divisão, não há cura sem invenção. A análise, então, não é um processo de adaptação, mas de desidentificação. Não é um retorno à norma, mas uma travessia do fantasma. E ainda, não é uma correção, mas uma criação.

Na clínica, isso se apresenta de forma muito concreta. O sujeito chega com uma queixa — ansiedade, depressão, angústia, insônia, compulsão — e, muitas vezes, o que ele busca é um alívio, uma solução rápida, uma resposta. Mas a psicanálise não oferece respostas — ela oferece escuta. Uma escuta que não é empática no sentido terapêutico, mas transferencial no sentido estrutural. Uma escuta que aposta na palavra do sujeito, na sua capacidade de se implicar no próprio sofrimento, de encontrar um saber que ele mesmo produz. Porque o inconsciente não é um depósito de traumas — ele é um saber que se ignora, não quer saber. E a análise é o espaço onde esse saber pode emergir, não como verdade absoluta, mas como verdade meio dita, como resto, como furo.

E é por isso que a psicanálise resiste à lógica da medicalização, da patologização, da normatização. Não porque ela negue a importância da psiquiatria, da farmacologia, das políticas públicas — mas porque ela insiste em algo que essas abordagens tendem a apagar: o sujeito. O sujeito do desejo, o sujeito do inconsciente, o sujeito do sintoma. A saúde mental, então, não é a ausência de sofrimento, mas a possibilidade de fazer algo com ele. De dar-lhe uma forma, uma função, uma inscrição, um "saber-fazer-com". De transformá-lo em ato, em palavra, em criação. E isso exige tempo, transferência, escuta — três coisas que o discurso contemporâneo sobre saúde mental tende a desprezar.

Vivemos em uma época em que o sofrimento psíquico foi capturado pelo discurso da performance. Sofrer é falhar. Angustiar-se é ser fraco. Não se adaptar é ser disfuncional. E, nesse contexto, a saúde mental virou um imperativo moral: cuide da sua mente, regule suas emoções, seja resiliente. Mas o que a psicanálise nos lembra é que o sofrimento não é um erro — ele é uma via de acesso ao desejo. Que a angústia não é um sintoma a ser eliminado — ela é o afeto que não engana. Que a loucura não é o oposto da razão — ela é o que a razão recalca. E que a cura, se é que podemos falar em cura, não é a eliminação do sintoma, mas a sua travessia, sua reinscrição, a sua sublimação.

Saúde mental, então, numa perspectiva psicanalítica, é poder sustentar a própria divisão. Poder se responsabilizar pelo próprio desejo, se autorizar a existir de forma singular, mesmo que isso implique não corresponder ao ideal. É poder fazer laço com o Outro, mas sem se dissolver nele. Poder dizer o que nos atravessa, mesmo que isso não seja compreendido, aceito, validado. É ter possibilidade de inventar uma forma de viver que não seja apenas sobrevivência. E isso, no fundo, é o que a psicanálise propõe: não uma vida sem sofrimento, mas uma vida com sentido. Um sentido que não é dado, mas construído. Um sentido que não é universal, mas singular. Que não é exatamente resposta, mas perguntas.

Porque, no fim das contas, saúde mental não é estar bem. Mas sim, poder dizer o mal que nos habita e poder fazer algo com ele. Transformando o sintoma em estilo, o trauma em narrativa, o gozo em criação. E isso não se faz sozinho. Isso se faz na transferência, na escuta, no laço. Isso se faz com o Outro — mas um Outro que não sabe, que não julga, que não cura. Um Outro que escuta, e ao escutar, permite que o sujeito se escute e, quem sabe, possa inventar uma nova forma de desejar.






X

Quer receber novidades?

Assine nossa newsletter!

Precisa de ajuda?