Postado por Gabriel Leva França Maciel em 05/04/2024 15:32
Dizemos a nós mesmos ou aos outros que o tempo cura tudo, quando alguma coisa, geralmente irreparável e sobre a qual pouco podemos fazer, acontece. Diante de alguma ferida que não podemos mais fechar, apelamos para esse tecido misterioso e supostamente mágico, o tempo.
Contudo, quando eu achei que o tempo curaria tudo e que sua passagem tinha me ensinado as lições que eu precisava aprender, foi grande a surpresa de encontrar os velhos padrões se repetindo.
Volta e meia eu fico hipotetizando: talvez sejamos nós quem cresçamos em volta dos nossos traumas, talvez sejam eles que se tornem menos significativos porque outras coisas aparecem, talvez se apequenem com o esquecimento, com nossa memória pouquíssimo confiável e capaz de inverter coisas de lugar, trocar nomes, rostos, dias inteiros, talvez até mais do que isso e, assim, fazer alguma coisa que antes doía desaparecer aos poucos, esvanecendo-se ou até mesmo desaparecer repentinamente, como uma amnésia que deixa um buraco em nossa própria história, aquilo que parece que, de fato, não aconteceu.
De qualquer forma, acho que no fundo sei que tudo o que machuca de verdade, profundamente, e desaparece assim, sem mais nem menos, tende a voltar de outra forma, às vezes, ainda mais dolorida.
O tempo escorre rápido, enquanto nós tentamos realizar alguma cartografia, um mapa para se localizar nesse vazamento, a vida acontecendo sem parar e cada vez mais rápida, nós sem entendermos direito sequer o que aconteceu na semana passada, o que foi mesmo que o meu analista me disse? Como foi a última frase que ela me falou? Como era mesmo a voz daquela que me dizia palavras tão duras?
Não é certo que nosso modo de contar, pensar e viver o tempo seja o melhor possível. Mas o tempo cura tudo, nos dizem ou nós dizemos. E essa é uma ótima desculpa para não se movimentar em direlção àquilo que não queremos enxergar de jeito nenhum. Bem, é verdade que não vamos querer enxergar grande parte das coisas que vão nos aparecer em um processo de rememoração (que é, de certa forma, um jeito de viajar no tempo), vamos fazer alguma birra quando isso ocupa um espaço nos nossos dias, antes de dormir, quando a cabeça fica um pouco mais vazia ou ainda mais cheia de pensamentos. Vamos estabelecer alguma resistência - e essa é uma palavra de ordem na psicanálise - para não precisar ver, falar, ouvir ou lembrar de algo. O mesmo algo que nos leva até uma sessão de terapia, pode ser aquilo que não queremos dizer.
Pode ser mais fácil, dessa forma, lançar a responsabilidade no tempo. Ainda que a gente não saiba nem definir exatamente o que é o tempo, onde ele está, porque passa como passa e não de outra forma. Assim, sem saber bem o que o tempo é, cabe pensarmos no que acontece conosco durante a viagem dos ponteiros. No que seremos capazes de fazer com nossos comportamentos, queixas e desejos.
Quando tomamos coragem para nos engajar com um processo de mudança, muitas vezes incômodo, entendemos que o tempo mesmo não faz muita coisa, senão passar e nós ficamos contando os dias, os meses, os anos, mais longe ou mais perto? Depende, de que?
Quem é capaz de "curar" qualquer coisa é a gente. O poder de ação está justamente no engajamento que teremos para de fato pagar o preço por transformar um sofrimento em outra coisa - que é o preço de transformarmos a nós mesmos no processo. E lá vamos nós correr atrás de suturar as feridas e se debater pra fazer do tempo nosso aliado. Nessas horas parece que todo tempo é pouco.
O fazemos nesse tempo? O que fazemos COM ele?
É tempo de seguir em frente ou voltar atrás? São momentos de transformação ou repetição?
Vale lembrar que somos nós que matamos o tempo, mas é ele que nos enterra, como disse Machado de Assis. Para além de Machado, cito Faulkner em "O som e a fúria", em uma amarga passagem para nos lembrar a consequência de se marcar o tempo nesses dias irrecuperáveis: "era o relógio de meu avô, e quando o ganhei de meu pai ele disse Estou lhe dando o mausoléu de toda a esperança e todo desejo; é extremamente provável que você o use para lograr o reducto absurdum de toda experiencia humana, que será tão pouco adaptado às suas necessidades individuais quanto foi às dele e às do pai dele” (Faulkner, 2017).
E agora, quanto tempo ainda tempos?