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Desejar o desejo de desejar?

Postado por Laís Comini em 08/05/2025 08:10


Segundo o entendimento geral, o desejo é frequentemente entendido como um impulso natural para obter algo que se deseja, seja um objeto, uma experiência ou uma realização pessoal. No dicionário, é descrito como querer, vontade, expectativa de posse ou conquista. Também pode estar associado à ambição, cobiça ou sede, representando um anseio. Ele é visto como uma "manifestação natural da vontade", muitas vezes associada a necessidades ou aspirações concretas.

Na perspectiva psicanalítica, especialmente na obra de Lacan, esse conceito torna-se uma pouco mais complexo. Inicialmente, pensa-se que o sujeito se forma a partir da relação com o "Outro", que representa a ordem simbólica e a linguagem. Desde a infância, o indivíduo é inserido nesse universo de significantes, e sua identidade é construída a partir das identificações e das faltas que emergem nesse processo. O desejo, por sua vez, nasce dessa falta constitutiva: o sujeito deseja aquilo que lhe falta, mas que nunca pode ser plenamente alcançado. Dessa cena, conseguimos associar "desejo" à "falta". Então, se falta há desejo?

Outro ponto, faz-se pensar que desejo é inseparável da linguagem. Como seres de linguagem, nossa relação com o mundo não é natural ou instintiva, mas mediada por significantes — palavras, símbolos e estruturas que moldam nossa subjetividade. Lacan argumenta que o desejo surge da falta, ou seja, da impossibilidade de representar completamente a realidade na linguagem.

Como a linguagem nunca captura plenamente o real da experiência, sempre há um espaço vazio, um resto ou um intervalo entre o que dizemos e o que realmente queremos dizer. Esse espaço é onde o desejo se manifesta: buscamos incessantemente algo que nos falta, mas que nunca pode ser plenamente alcançado.

Lacan também introduz o conceito de Estádio do Espelho e de Objeto a para desenvolver o conceito de desejo. Estágio do Espelho como um momento crucial na constituição do sujeito. No Estádio do Espelho, a criança, ao se reconhecer na imagem, se aliena de sua própria experiência imediata e passa a desejar aquilo que lhe escapa—uma completude que nunca será plenamente alcançada. A identificação especular inaugura uma falta estrutural no sujeito, inscrevendo-o na ordem simbólica e consolidando a dinâmica do desejo como efeito dessa incompletude constitutiva. Já o objeto a' representa precisamente aquilo que causa a falta e, paradoxalmente, aquilo que o sujeito persegue ao longo da vida. Ele está intrinsecamente ligado à angústia e à impossibilidade de satisfação plena, pois o desejo nunca encontra um objeto definitivo capaz de saciá-lo completamente.

Nesse jogo dialético, a relação com o fantasma (ou a fantasia) torna-se essencial, uma vez que é por meio dela que o sujeito confronta sua falta e delineia sua posição subjetiva. O desejo do Outro surge como um eixo estruturante desse processo, orientando a busca incessante por aquilo que escapa, mas que, ao mesmo tempo, fundamenta a subjetividade do indivíduo.

Ao enunciar que "o desejo é o desejo do Outro", Lacan destaca que o desejo não advém de uma interioridade autônoma, mas se constitui no quadro da matriz simbólica que antecede e molda o sujeito. Dessa maneira, ele não se reduz à busca objetal, mas se configura pela lógica da castração simbólica e pela impossibilidade de um ser em plenitude. O sujeito, capturado pela estrutura da linguagem, desloca-se incessantemente na errância do desejo, tensionando-se entre a falta e o fantasma, que opera como suporte da economia desejante e da organização subjetiva.

Instaura-se ai uma mudança dialética entre falta-a-ter, para uma falta-a-ser. Diferente da falta-a-ter, que remete à ausência de um objeto específico, a falta-a-ser diz respeito a uma incompletude ontológica do sujeito, uma falta estrutural que emerge da sua inscrição na linguagem e no campo simbólico.

Pensando no manejo clínico, a escuta analítica dirige-se à produção de um saber sobre o desejo, possibilitando ao sujeito reposicionar-se frente à sua própria estrutura desejante e suas formações sintomáticas. O desejo, na clínica, se manifesta de forma deslocada, muitas vezes encoberto por sintomas, repetições e fantasias. Portanto, o analista, ao ocupar a posição de sujeito suposto saber, opera de maneira a não impor um sentido fechado ao desejo do analisando, mas sim permitir que ele se revele na cadeia significante. Isso implica um manejo cuidadoso da transferência, onde o desejo do analisando pode ser trabalhado sem que o analista se torne um objeto de satisfação ou um guia normativo.

Sendo assim, em análise, não se busca eliminar essa falta, mas sim possibilitar que o sujeito se aproprie dela e encontre novas formas de subjetivação. Desejar o desejo de desejar, faz figura ao encontro analítico que propicia que o desejo do analisando se articule sem ser capturado por demandas imaginárias ou por uma interpretação rígida. O objetivo é que o sujeito possa se reposicionar diante de seu desejo, reconhecendo sua estrutura e suas implicações na constituição de sua subjetividade.






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