Postado por Filipe Gardin Istvandic em 31/01/2025 09:30
“Não imagine que o antidepressivo vai funcionar sem linguagem” -Christian Dunker
A teoria do desequilíbrio químico da depressão está cada vez mais caindo por terra. Diversas producões científicas fornecem conclusões que confirmam que não há evidências que apoiem a ideia de que a depressão é causada por perturbações no sistema de serotonina do cérebro. Essa suspeita, que pairava desde o surgimento da teoria, esclare-ce agora diante de novas provas. Mas a morte dessa teoria do desequilíbrio químico não tem total influência sobre a eficácia dos antidepressivos que afetam o sistema da serotonina. Esses medicamentos não foram desenvolvidos com base nessa premissa. Na verdade, é exatamente o oposto – a teoria do desequilíbrio químico baseava-se numa compreensão emergente de como os antidepressivos funcionavam.
Como começou a teoria do “desequilíbrio químico”?
Observou-se que os dois primeiros medicamentos antidepressivos, ambos descobertos na década de 1950, tinham efeitos positivos sobre o humor como efeitos colaterais das funções esperadas. A iproniazida foi desenvolvida como tratamento para a tuberculose e a imipramina como anti-histamínico. Sabemos agora que o ipronizaid é um inibidor da monoamina oxidase – ele interrompe a enzima que decompõe a serotonina e substâncias químicas cerebrais semelhantes. Mas não sabíamos disso quando os seus efeitos antidepressivos foram observados pela primeira vez em 1952. A imipramina é um antidepressivo tricíclico e, entre outros efeitos, bloqueia a recaptação da serotonina após sua secreção, permitindo também que mais dessa substância permaneça no cérebro.
Uma hipótese simples apresentou-se então: se foi demonstrado que ambas as classes de antidepressivos aumentam os níveis cerebrais de serotonina, logo a depressão deveria ser causada por baixos níveis de serotonina. Os investigadores decidiram demonstrar isto em pacientes com depressão, mostrando que a serotonina e os seus metabolitos e precursores eram mais baixos no sangue, no líquido cefalorraquidiano, e assim por diante. Mas estes estudos sofreram com o que hoje sabemos que afetou muitos estudos da sua época, levando à chamada “crise de replicação”.
Os estudos utilizaram amostras pequenas, relataram seletivamente os seus resultados (principalmente por influência massiva da indústria farmacêutica como veremos a seguir no texto) e, se não conseguiram demonstrar a hipótese, muitas vezes nem foram relatados. Em suma, os resultados nunca foram confiáveis e, desde então, estudos maiores e meta-análises (que resumiram os muitos estudos mais pequenos) deixaram claro que a hipótese não era apoiada em nada concreto.
Qual é a ligação entre a teoria e os antidepressivos?
Entretanto, as empresas farmacêuticas identificaram uma linha clara para comunicar a eficácia dos seus medicamentos. A depressão foi causada por um “desequilíbrio químico” que poderia ser corrigido com antidepressivos. Isto coincidiu com o desenvolvimento de uma nova classe de antidepressivos, os inibidores seletivos da recaptação da serotonina, que, como o próprio nome sugere, eram mais seletivos do que os antidepressivos tricíclicos no direcionamento da recaptação da serotonina como mecanismo de ação.
Estes medicamentos – então conhecidos como Prozac, Zoloft e Cipramil – tornaram-se “sucessos de venda” e continuam a ser amplamente utilizados até hoje (embora com uma variedade de nomes desde a expiração das suas patentes). Há um impasse na psiquiatria científica quanto a compreensão das nuances da função cerebral e na teoria do desequilíbrio químico, mesmo assim o que vemos é um constante aumento no consumo desses medicamentos desde a década de 60.
Nunca se obteve clareza na maneira como os ISRS funcionavam, mas houve, e há, muitos médicos com conhecimentos menos sofisticados sobre depressão e neuroquímica que ficaram felizes em repetir esta mensagem aos seus pacientes. Foi uma mensagem eficaz e que conquistou o imaginário popular.
Então, os antidepressivos são eficazes?
O que a maior parte da produção acadêmica recente nos mostra é: não há provas que apoiem a teoria do desequilíbrio químico, e nem nunca existiu, no passado, pois os resultados antigos também foram levantados e retrabalhados apontando para a tal seletividade dos resultados e apontamentos não substanciais. Isso mostra um mal-entendido sobre como funciona a ciência médica.
A medicina é pragmática. Muitas vezes é estabelecido que um tratamento funciona bem antes de se compreender como funciona. Muitos medicamentos comumente usados foram usados durante décadas antes de compreendermos seus mecanismos de ação: da aspirina à morfina e à penicilina. Saber que funcionavam proporcionou o ímpeto para estabelecer como funcionavam; e esse conhecimento gerou novos tratamentos.
A evidência de que os ISRS são eficazes para a depressão é convincente para a maioria dos avaliadores razoáveis. Eles não são eficazes para tantas pessoas com depressão quanto poderíamos esperar, são, em geral, tão eficazes quanto os tratamentos com placebo. Os críticos sugerem que a magnitude da diferença entre os medicamentos e o placebo não é grande o suficiente para justificar o seu uso. Mas será que isto é somente uma questão de opinião visto que a imensa maioria dos usuários dessa classe de medicamentos sofrem com muitos efeitos colaterais?
Como funcionam os antidepressivos?
Na verdade, ainda não sabemos realmente como ou por que os antidepressivos funcionam. O cérebro é um órgão complexo. Ainda não temos uma ideia clara sobre como funcionam os anestésicos gerais. Mas poucas pessoas recusariam um anestésico quando contemplassem uma cirurgia séria com base nisso. Na mesma linha, ao considerar se um antidepressivo pode ser uma opção para alguém com depressão, é de pouca importância que o seu mecanismo de ação seja compreendido de forma incompleta. Então, vamos acabar com a teoria do desequilíbrio químico.
Devemos continuar os nossos esforços para compreender a natureza da depressão enquanto continuamos à procura de melhores tratamentos. Fazer dieta, fazer exercícios e dormir é eficaz para muitas pessoas com depressão. A psicanálise também é muito útil (tema do meu próximo post). Mas muitas pessoas lutam contra a depressão apesar de tentarem estas coisas, e é por elas que precisamos continuar os nossos esforços para encontrar melhores tratamentos.
Referências:
Almohammed OA, Alsalem AA, Almangour AA, Alotaibi LH, Al Yami MS, et al. (2022) Antidepressants and health-related quality of life (HRQoL) for patients with depression: Analysis of the medical expenditure panel survey from the United States. PLOS ONE 17(4): e0265928. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0265928
Moncrieff, J., Cooper, R.E., Stockmann, T. et al. The serotonin theory of depression: a systematic umbrella review of the evidence. Mol Psychiatry 28, 3243–3256 (2023). https://doi.org/10.1038/s41380-022-01661-0