Postado por Samara Bezerra da Silva em 27/06/2025 21:15
Introdução
A procrastinação, ato de adiar tarefas ou decisões importantes, é um fenômeno comum e muitas vezes debilitante, especialmente no mundo contemporâneo, marcado pela hiperconectividade e estímulos constantes oferecidos pela internet. A partir de uma perspectiva psicanalítica, compreendê-la exige mais do que classificá-la como falta de disciplina: trata-se de um sintoma que pode estar enraizado em conflitos inconscientes, mecanismos de defesa e na forma como o sujeito se relaciona com o desejo, o tempo e o prazer.
O Que é Procrastinação? Uma Breve Definição Psicológica
Na psicologia, a procrastinação é entendida como um comportamento autoimpeditivo, em que o indivíduo adia atividades, mesmo ciente de consequências negativas. É associada a dificuldades emocionais, como ansiedade, baixa autoestima, medo do fracasso ou do sucesso. No entanto, é na psicanálise que se aprofunda a análise do que está em jogo no inconsciente do sujeito que procrastina.
O Inconsciente e o Ato de Adiar: Uma Perspectiva Psicanalítica
Para a psicanálise freudiana, o sujeito não é senhor de sua própria vontade; há forças inconscientes que determinam seus atos, inclusive os que parecem triviais. A procrastinação pode ser compreendida como um ato falho – aquilo que revela mais do que esconde. Sigmund Freud (1901), em Psicopatologia da Vida Cotidiana, já apontava que os esquecimentos, atrasos e adiamentos carregam conteúdos reprimidos e conflitos internos.
Segundo Freud:
“Nenhuma ação humana, por mais banal que pareça, é isenta de sentido ou de motivação inconsciente.” (Freud, 1901, Psicopatologia da Vida Cotidiana)
Ao procrastinar, o sujeito pode estar evitando uma tarefa que remete a exigências superegóicas, medo de castração simbólica, ou ainda tentando manter um gozo momentâneo – como acessar redes sociais – que sustenta a ilusão de bem-estar, mesmo que passageiro.
Lacan e o Gozo da Procrastinação
Jacques Lacan aprofunda esse entendimento ao trabalhar com o conceito de gozo (jouissance). O sujeito procrastina não apenas para evitar o desprazer, mas também porque há um certo gozo envolvido no adiamento: o prazer paradoxal em “deixar para depois”, o pequeno gozo em escapar da obrigação.
Como afirma Lacan:
“O desejo é a metonímia da falta-a-ser."(Lacan, 1958, O Seminário, Livro 6: O Desejo e sua Interpretação)
Nesse sentido, a procrastinação pode ser uma forma de manutenção da falta, uma tentativa inconsciente de não lidar com a castração, adiando a confrontação com o real (a tarefa, o trabalho, a entrega).
A Internet e o Supermercado de Estímulos: Uma Nova Cena para o Sujeito Procrastinador
O cenário atual da internet intensifica esse fenômeno. As redes sociais, vídeos curtos, notificações constantes e recompensas imediatas favorecem a dispersão, substituindo o princípio de realidade pelo princípio do prazer. Como pontua Byung-Chul Han:
“A sociedade do desempenho é também uma sociedade da distração e da depressão.” (Han, 2015, A Sociedade do Cansaço)
A internet opera como um objeto transicional moderno, oferecendo um alívio simbólico imediato à angústia provocada pelas demandas externas, mas mantendo o sujeito em uma posição infantilizada, onde o desejo é constantemente adiado ou fragmentado em múltiplas satisfações parciais.
Mecanismos de Defesa e a Resistência à Tarefa
Na clínica psicanalítica, a procrastinação pode aparecer como resistência. O sujeito evita tocar em conteúdos internos dolorosos que seriam mobilizados pela realização da tarefa. Essa resistência pode assumir formas como:
Freud reconhece que a resistência é parte inevitável do processo analítico:
“A resistência se mostra como uma força que luta contra a cura, contra o acesso à verdade inconsciente.” (Freud, 1914, Recordar, Repetir e Elaborar)
Caminhos Clínicos e Estratégias Possíveis
A superação da procrastinação não se dá por receitas prontas, mas pela escuta do desejo do sujeito. A psicanálise busca permitir que o sujeito se aproprie de sua fala, do seu desejo, e consequentemente de seus atos. A clínica propõe:
Conclusão
A procrastinação é mais do que um problema de produtividade: é um fenômeno psíquico que articula desejo, gozo, falta e resistência. A internet, com suas promessas de prazer imediato, alimenta esse ciclo, oferecendo uma saída ilusória. A psicanálise, ao contrário, convida o sujeito a se responsabilizar pelo próprio desejo e a enfrentar o mal-estar inevitável da existência sem recorrer à fuga constante. Assim, mais do que combater a procrastinação, é preciso escutá-la.
REFERÊNCIAS
DUNKER, Christian Ingo Lenz. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2016.
FONSECA, Caroline. Procrastinação: a arte de deixar para depois. Porto Alegre: Artmed, 2010.
FREUD, Sigmund. A psicopatologia da vida cotidiana (1901). In: FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 6.
FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar (1914). In: FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 12.
HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2015.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação (1958-1959). Rio de Janeiro: Zahar, 2016.