Erro

A Linguagem na Clínica Psicanalítica

Postado por Jônatan Fernandes Costa em 25/02/2025 10:55


"(...) As palavras são assim, disfarçam muito, vão-se juntando uma com as outras, parece que não sabem aonde querem ir, e de repente, por causa de duas ou três, saem, simples em si mesmas..."

– José Saramago (Ensaio Sobre a Cegueira).


"(...) Não sei, não sei. Não devia de estar relembrando isto, contando assim o sombrio das coisas. Lenga-lenga! Não devia de. O senhor é de fora, meu amigo mas meu estranho. Mas, talvez por isto mesmo. Falar com o estranho assim, que bem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito que eu falasse mais mesmo comigo".

– Guimarães Rosa (Grande Sertão: Veredas).


 

       Sigmund Freud, em Recomendações aos Jovens que Exercem a Psicanálise (1912 [1969]), aponta que a clínica psicanalítica é um método que possibilita o estabelecimento de um modo específico de relação com o sofrimento, onde o analista se dispõe para escutar o outro, reconhecendo ali a existência (do sofrimento) de alguém, com vistas a tratá-lo, o que nem sempre implica em cura. Ao nos referimos à “clínica”, não a restringimos apenas ao consultório – sendo este uma das clínicas possíveis –, mas a entendemos como uma ética e um método que pode ocorrer em diversos contextos: hospitais, escolas, empresas, ruas, universidades, entre outros. 

       A psicanálise tem como fundamento epistemológico o estudo do inconsciente e seus processos, compreendido como: "1. um procedimento para a investigação de processos psíquicos que de outro modo são dificilmente acessíveis; 2. um método de tratamento de distúrbios neuróticos, baseado nessa investigação; 3. (…) uma série de conhecimentos psicológicos adquiridos dessa forma, que gradualmente passam a constituir uma nova disciplina científica" (Freud, 1923 [2011], p. 245). No texto Sobre as Afasias (1891 [1979]), Freud rompe com o paradigma neurológico de sua época ao apontar a insuficiência das explicações anatomofisiológicas para os fenômenos afásicos, propondo um modelo dinâmico que não apenas explica as afasias, mas inaugura uma nova perspectiva sobre os processos linguísticos e simbólicos. É nesse contexto que Freud introduz conceitos que se tornariam centrais para a psicanálise, como investimento (catexia), projeção, introjeção e representação.

       Mais tarde, em O Sentido Antitético das Palavras Primitivas (1910), Freud adverte: “Nós psiquiatras não podemos escapar à suspeita de que melhor entenderíamos os sonhos se soubéssemos mais sobre a linguagem”, marcando a importância da linguagem para a investigação dos processos inconscientes. É possível afirmar que Lacan realiza essa ambição freudiana ao reinterpretar o inconsciente como uma linguagem, incorporando contribuições da linguística, especialmente a partir de Ferdinand de Saussure e Roman Jakobson, e do estruturalismo. 

       Claude Lévi-Strauss, antropólogo francês, afirma que cada cultura possui uma estrutura mínima e universal que a diferencia da natureza (Lévi-Strauss, 2012). Ou seja, toda civilização se organiza em torno de uma lei singular que delimita e insere o sujeito na cultura. Associando-se ao estruturalismo de Lévi-Strauss, à linguística saussuriana e aplicando à metapsicologia freudiana o estatuto de uma instância simbólica, Jacques Lacan (1953 [2008]) adverte que o social está marcado e impresso pela função da fala. Segundo o autor, "o discurso humano é como uma moeda de imagem apagada que passa de mão em mão" (Lacan, 1953 [2008], p. 37), fazendo com que exista uma progressão inesgotável e cíclica da linguagem. 

       Nessa referência epistemológica, o axioma que apresenta o procedimento de formalização do inconsciente pela estrutura é "o inconsciente é estruturado como uma linguagem". Dessa forma, Lacan (1953 [1998]) articula a linguagem e o inconsciente ao que ele concebe como o campo do Simbólico e do Outro, sendo este o lugar que insere o homem na cultura e, consequentemente, nas clínicas. Esse pensamento inaugura uma nova forma de compreender o meio social e realoca a psicanálise em sua base geográfica fundamental: a linguagem. Lacan sugere que o dito só se torna um fato a partir das próprias consequências do dizer, ou seja, o sujeito emerge a partir do discurso, seja por meio da fala, do corpo ou de outras formas discursivas. Assim, a clínica psicanalítica opera como um dispositivo para dar voz ao sujeito do inconsciente, que é, sobretudo, marcado político, social e historicamente.

       Em O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante (1970-71 [2009]), Lacan rememora que somos mais do que seres capazes de falar. A concepção de um funcionamento ancorado na linguagem e enquadrado em uma lógica de ser(es) falante(s) ocupa lugar central em sua obra. No entanto, para além da integralidade de um discurso, existe algo que fala, pulsa e nos antecede como sujeitos – o Outro. É através da linguagem que nos constituímos e nos alienamos desde a tenra idade, somos atirados em uma cultura antes mesmo do nascimento, submetidos a determinações e imersos na ordem simbólica da relação inicialmente estabelecida com o Outro materno, que oferecerá significantes para nossa constituição. No discurso, evidenciamos nossa essência desejante e faltante; é também por meio dele que opera a formação, a sondagem, a aprendizagem e a "cura". A linguagem cria laços, é semblante e nos implica no que Lacan chamou de "a experiência trágica da vida" (Lacan, 1970-71 [2009]).

 

Referências: 

FREUD, S. (1979). A interpretação das afasias (A. P. Ribeiro, trad.). Lisboa: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1891)

FREUD, S. (1912). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. ESB, Rio de Janeiro: Imago, 1969, v.XII

FREUD, S. (2011). Psicanálise e a teoria da libido. In P. C. de Souza (Trad.), Sigmund Freud Obras completas: Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923) (Vol. 15, pp. 273-308). São Paulo: Companhia das Letras. (Originalmente publicado em 1923).

LÉVI-STRAUSS, Claude (2009). As estruturas elementares do parentesco. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 540 p. (Coleção antropologia)

LACAN, J. (1953). Função e Campo da fala e da linguagem. (Trad. V. Ribeiro). In Escritos. Rio de Janeiro : Zahar, 1998. 

LACAN, J. (1953) O mito individual do neurótico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

LACAN, J. (1970-71). O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

 

Jônatan Fernandes Costa | CRP 05/79569






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