Postado por Lucas Henrique Ferreira Alves em 02/08/2023 20:19
O que é o trauma na visão da psicanálise?
Podemos considerar que os traumas dizem respeito a acontecimentos, reais ou fantasiados, ocorridos no passado. Quando digo fantasiados, não quero de modo algum desmerecer, desmentir ou deslegitimar a dor que um evento deste porte pode causar em determinada pessoa.
No entanto, Freud, que no início de sua teoria pensava no trauma como produto de situações unicamente reais, percebeu, em suas pacientes histéricas, que muito daquilo que elas narravam remetia, na verdade, ao campo da fantasia, e que essa dimensão imaginária por si só, também possuía força suficiente para provocar um trauma.
Sendo assim, os traumas são essas experiências, reais ou imaginárias, que evocam consigo afetos aflitivos, como susto, angústia, dor, vergonha, nojo e culpa. O trauma é como um corpo estranho que se aloja no psiquismo da pessoa, desestabilizando seu sistema. Essa desordem produz, em muitos casos, um circuito repetitivo de dor, pois o modo de satisfação do sujeito é substituído pela dor.
Por conseguinte, esses afetos, sentimentos e emoções decorrentes do trauma, ficam retidos, estrangulados dentro do sujeito. E ele vivencia um sofrimento que parece não ter fim.
Os traumas podem ser inúmeros tipos de situações ou experiências que um sujeito se depara. No entanto, a fins didáticos, focarei em um tipo de trauma específico, que aparece frequentemente na clínica, que é o abuso sexual. A partir deste trauma, explicarei a visão psicanalítica sobre os tempos traumáticos.
Como assim tempos traumáticos? Bom, para a psicanálise o estabelecimento de um trauma passa por mais de um tempo. E o tempo, é uma construção complexa.
O primeiro tempo do trauma, seria a experiência inicial e intensa que o sujeito - geralmente a criança - vivenciou. Como resolvi escrever sobre o abuso sexual, é este que pegaremos como exemplo. É de conhecimento geral a frequência que este ato de invasão e violência atinge as crianças, deixando sequelas terríveis em grande parte das vezes. Sabe-se que, a situação de abuso geralmente envolve uma certa disparidade de idade, sendo praticada por um adulto ou um adolescente.
Quando ocorre o ato em si, o que se percebe é um susto, um estranhamento e, dependendo da intensidade do ato, a criança já percebe que se trata de um ato violento. Entretanto, na grande maioria das vezes, a criança não tem um entendimento completo daquilo que vivenciou. Ela sabe, ela nota que aquilo é algo estranho, invasivo, desconfortável. Mas ela não possui um entendimento sexual o suficiente, não compreende o quão nocivo e violador é aquele ato.
Por isso, a experiência tende a ser esquecida, recalcada. É um mecanismo de defesa do psiquismo tentar esconder, suprimir aquele acontecimento, para evitar um grande sofrimento.
Portanto, o primeiro tempo do trauma, diz sobre a invasão em si, sobre a violência, mas não sobre o sofrimento e o sintoma que virá nos tempos posteriores, pois, como já mencionado, a criança não entende o real significado daquilo que vivenciou.
Com o passar dos anos, a criança cresce e adquire o conhecimento sobre o sexual, sobre a sexualidade, sobre o seu corpo. Isso por si só já pode funcionar como um gatilho que remete o pensamento da pessoa àquela lembrança, que há muito tempo não aparecia, daquela cena que ela vivenciou na infância. Algumas vezes, porém, essa lembrança está tão recalcada, tão profunda no inconsciente do sujeito, que o conhecimento sobre o sexual, por si só, não é o suficiente para que possa ser acessada.
Ocorre, pois, em muitas vezes, um segundo evento, de caráter semelhante ao primeiro, que funciona como o segundo tempo do trauma. Ou seja, o segundo tempo traumático é um momento posterior que desperta os traços da cena traumática da infância. Agora, deste modo, a pessoa entende a dimensão de tudo aquilo que ela viveu.
Os afetos, os sentimentos decorrentes disso são inúmeros. A pessoa começa a vivenciar um sofrimento sintomático. Pensando no caso do abuso sexual, o que poderia ser uma situação que funcionaria como o segundo tempo? Um outro abuso, um atentado ao pudor, uma cena que se assemelhe àquela sofrida anteriormente, uma violência vinda da mesma pessoa que abusou e inúmeras outras situações que podem funcionar como esse elo de ligação.
Em suma, o segundo tempo é aquele em que um evento atual ressignifica o anterior, inundando o psiquismo do sujeito.
É importante fazer um esclarecimento sobre isso, pois muitas pessoas utilizam uma maneira violenta de explicar o assunto, dando a entender que a criança, ao vivenciar o primeiro tempo, não percebe de modo algum o que ocorre e que o problema vem apenas depois.
Não é sobre isso. A criança já vive uma angústia, já tem um estranhamento e já começa a desenvolver um conflito. Mas ela tende a esquecer, justamente por não ter uma maturidade e um entendimento sexual sobre aquilo. Isso não quer dizer de modo algum que o que ela viveu é irrelevante. Pelo contrário, já é algo que produz angústia. Porém, na clínica psicanalítica, percebe-se que é o segundo tempo que causa os sintomas e o adoecimento posterior.
O terceiro tempo seria esse processo do retorno do recalcado e a repetição de um circuito de dor e sofrimento que se estabelece no sujeito. Ele é inundado pelas memórias traumáticas, sente medo, culpa, nojo de si mesmo, vergonha. Isso se repete dentro dele de modo que ele não consegue se desvencilhar.
Seu comportamento muda, seu jeito de ser se transforma. Seus sonhos são invadidos pela cena traumática, como se o sonho estivesse buscando uma forma de ajudar o sujeito a elaborar suas vivências traumáticas. O terceiro tempo, portanto, é sujeito tomado pelo trauma. O sujeito que não consegue mais sentir prazer e que está tomado pela dor e pelos conflitos.
Esses conflitos, envolvem muitas vezes, falar sobre o acontecimento. O nojo de si, a culpa e a vergonha impedem que o sujeito coloque para fora aquilo que ele vivenciou e aquilo que ele sente. E aquilo vai o estrangulando.
O psicanalista Sandor Ferenczi, traz uma contribuição excelente para esse entendimento dos tempos traumáticos. É o que ele chama de o tempo da desautorização, o tempo do desmentido. Considerarei este o quarto tempo traumático, embora ele possa ocorrer a qualquer momento, inclusive após a cena primária da infância. Este tempo, se refere ao momento em que o sujeito dá testemunho de sua vivência e é desacreditado por outro.
O sujeito passa por um conflito enorme para conseguir dizer sobre aquilo que viveu, e quando diz é desacreditado, desmentido por outra pessoa. Pessoas da própria família, na maioria das vezes. É comum, nestes casos, a negação do acontecimento ou a deslegitimação do sofrimento vivido. Esse momento é tão traumático para o sujeito quanto os anteriores. É quando ele sente que não pode contar mais com ninguém, que ninguém consegue entender o que ele viveu.
Infelizmente, existem profissionais na própria psicologia que acabam funcionando como alguém que desmente e desautoriza. Mas este está longe de ser o papel do psicólogo, do psicanalista ou de qualquer outro profissional da saúde mental. Na verdade, em um cenário ideal, este não deveria ser o papel de ninguém.
Por isso, no atendimento de uma pessoa que vivenciou um trauma, não importa exatamente se o acontecimento é real ou fantasiado. Não importa se aquilo aconteceu na realidade material ou não.
O que é importante é a experiência que o paciente traz a partir daquilo. Se aquilo é real para ele e o quanto ele foi afetado por aquilo. O desafio da clínica é oferecer um espaço adequado para o paciente conseguir dizer sobre aquilo que não consegue e que muitas vezes foi desautorizado ou desmentido por outro.
A análise visa proporcionar ao paciente uma possibilidade de elaborar melhor o que se passou e ressignificar suas vivências. Abandonar, gradualmente, as fixações existentes nele que retroalimentam o trauma.
Referências:
Albuquerque, M. et al. Trauma na visão da psicanálise (2018)
Freud, S. Estudos sobre a histeria (1895)
Kupermann, D. A desautorização em Ferenczi (2015)
Lucas Henrique Ferreira Alves - CRP-04/67750
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