Erro

Laços familiares

Postado por Lucas Henrique Ferreira Alves em 12/08/2023 11:57



Fazendo a releitura do excelente livro de Contardo Calligaris, “Cartas a um jovem terapeuta”, deparei-me novamente com o essencial capítulo sobre a família. Ao reler, percebi como o relato de Calligaris vai de acordo com a minha própria experiência clínica, com aquilo que venho observando em muitos pacientes. Uma observação que pode ser bem simples, a depender do ponto de vista: a família é o núcleo de incontáveis sofrimentos. 

Deparei-me com isso diversas vezes: o paciente que relata o quão insuportável sua irmã (rival) é. A paciente que sempre se sentiu negligenciada pelos pais quando mais precisou. Uma grande mulher que chega com a demanda de que precisava cortar o laço familiar. O adolescente que traz aquele ódio edípico por um pai repressor. Inúmeros casos, de inúmeras configurações distintas. 

Isso faz muitas pessoas questionarem: qual é o posicionamento da psicanálise acerca da família? O que é a família para a psicanálise? A psicanálise é contra a família? Foi diante destes questionamentos que Calligaris se debruçou neste capítulo. E o posicionamento dele é bem claro, e, com minha leitura, tentarei explicar por aqui. 

Hoje podemos pensar em família com uma variedade enorme de configurações, não mais apenas aquele modelo tradicional que quase sempre vigorou. A ideia do que é uma família, atualmente, consiste em conjuntos de pessoas que estabelecem laços pela via do afeto. Laços afetivos configuram uma família muito mais apenas do que ligações biológicas. Sendo assim, é impossível deixar de reconhecer que a família é uma condição indispensável para a sobrevivência humana. É uma união que - deveria - prover cuidado, assistência e amor. No entanto, laços familiares nem sempre produzem apenas coisas positivas. Podem produzir sofrimentos, angústias, neuroses. É nesse ponto que a psicanálise incide. Numa tentativa de entender como se configuraram esses sofrimentos e como eles ainda exercem influência. 

Um ponto que Calligaris enfatiza bastante é a questão do desejo e das expectativas dos pais sobre a vida dos filhos. De fato, não são poucos os pais que excedem esses desejos. Querem, basicamente, criar filhos como cópias deles mesmos. Agir, para que os filhos realizem desejos que eles próprios não realizaram. A problemática disso é bem simples: a produção de mais sujeitos frustrados e sem autonomia. 

Calligaris, como uma pessoa progressista, faz uma análise muito interessante da dicotomia conservadorismo e progressismo, analisando essa problemática familiar. Quando os pais criam cópias de si mesmos, eles estão mantendo uma ordem já estabelecida. Eles querem a manutenção dos desejos, dos ideais, dos valores que eles mesmos tiveram. Isso vai plenamente de acordo com a filosofia social do conservadorismo, que busca a manutenção de uma ordem atual estabelecida e tradicional. Uma família progressista, nesse sentido, seria aquela que autoriza seus filhos a buscar formas de ser mais autônomas. Que autoriza mudanças, revoluções, progressos. 

Nessa dicotomia, Calligaris conclui que a família é o que inventamos de melhor para a nossa própria sobrevivência, porém, ao mesmo tempo, uma instituição que tende a perpetuar ordens, valores e formas de ser já estabelecidas, chocando-se com o desejo de autonomia do indivíduo. 

Complemento Calligaris ao pontuar que há muito além dessa problemática em torno do desejo de autonomia e dos conflitos decorrentes disso. Os percalços da criação familiar produzem, como já mencionado, os sofrimentos adultos. Ou seja, muitas neuroses e adoecimentos mentais são resultado das consequências do que houve e do que há nos nossos laços familiares. E as possibilidades, nesse contexto, são múltiplas. Laços tóxicos e disfuncionais podem produzir sujeitos neuróticos. Ausência de cuidado e afeto pode gerar indivíduos que se sentem insuficientes. Cobranças excessivas e não reconhecimentos de feitos pode gerar sujeitos com necessidade de uma aprovação que nunca parece ser o suficiente. Negligências, sendo elas dos mais variados tipos, produzem sujeitos quebrados internamente. 

O trabalho do analista, nesse sentido, é oferecer ao paciente uma possibilidade de ele escapar, nem que seja um pouco, do que sua história familiar o reservou. Possibilitar uma mudança baseada na autonomia do sujeito. De um desejo de autonomia que, inevitavelmente, pode passar pela necessidade de cortar ou se afastar de laços disfuncionais. Este é um grande desafio, porém é definitivamente libertador. Finalizando com Calligaris, “o objetivo da psicoterapia é poder inventar uma vida que não seja apenas a que nossos pais desejaram para nós”.

 

Referências:

Calligaris, C. Cartas a um jovem terapeuta (2004).

Lucas Henrique Ferreira Alves - CRP-04/67750

Instagram: @psi_lucashfalves

https://psilucashfalves.blogspot.com/






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