Postado por Samara Bezerra da Silva em 22/05/2025 21:44
Sofrimentos Contemporâneos: Novas Configurações
A clínica atual se depara com sujeitos marcados pelo imperativo da produtividade, pela hipervalorização da imagem e pelo enfraquecimento dos laços sociais. Zygmunt Bauman (2001) descreve a sociedade líquida como caracterizada por relações frágeis e identidades instáveis. Nesse contexto, o sujeito contemporâneo frequentemente busca sentido diante da perda de referências simbólicas tradicionais (família, religião, comunidade).
Transtornos como depressão e ansiedade, por exemplo, são lidos na psicanálise não apenas como desequilíbrios químicos, mas como manifestações de impasses subjetivos. A depressão pode ser compreendida como luto não elaborado, melancolia diante da perda de ideais ou do eu ideal, como discutido por Freud em “Luto e Melancolia” (1917). Já a ansiedade, muitas vezes, se apresenta como sinal de um conflito psíquico reprimido, como indicava Freud desde seus primeiros escritos sobre neuroses.
A Transferência e o Lugar do Analista
Um dos pilares da clínica psicanalítica é o fenômeno da transferência — a repetição, na relação com o analista, de afetos e padrões relacionais inconscientes. Através dela, o paciente reatualiza conteúdos recalcados e pode, com o apoio da escuta do analista, ressignificá-los. Lacan reforça que o analista deve ocupar o lugar de “sujeito-suposto-saber”, não como detentor da verdade, mas como aquele que sustenta a falta, possibilitando o surgimento do desejo do sujeito.
Na clínica com pacientes contemporâneos, muitas vezes marcados por discursos medicalizantes e idealizações de cura rápida, a posição ética do analista é ainda mais fundamental: não responder com saber, mas com escuta, fazendo frente à angústia sem apressar o sujeito rumo a soluções imediatas.
Psicanálise e Diagnóstico: Uma Tensão Criativa
Diferente de abordagens que se baseiam em manuais diagnósticos como o DSM-5 ou CID-11, a psicanálise não parte da classificação para a intervenção. Embora o diagnóstico possa ter função organizadora, a escuta psicanalítica prioriza a singularidade. Como dizia Jacques Lacan, “não há estrutura sem sujeito”. Cada depressão, cada sintoma, carrega uma história única, um modo de gozo, uma posição do sujeito no laço social.
Isso não significa negligenciar os critérios diagnósticos, mas usá-los com cautela, sem deixar que o rótulo se sobreponha ao sujeito.
Considerações Finais
A clínica psicanalítica, diante dos desafios impostos pelas doenças mentais modernas, reafirma sua relevância ao privilegiar a escuta do inconsciente e a singularidade do sujeito. Ao invés de apressar a eliminação do sintoma, busca escutar o que ele tem a dizer. Nesse percurso, o sofrimento pode ser transformado — não em bem-estar imediato, mas em elaboração psíquica, em reposicionamento subjetivo.
Num mundo que demanda respostas rápidas, a psicanálise insiste no tempo do sujeito. E talvez seja exatamente essa insistência que ainda lhe confere potência transformadora na clínica contemporânea.
REFERÊNCIAS:
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
DUNKER, Christian Ingo Lenz. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015.
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia (1917). In: FREUD, Sigmund. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 14.
FREUD, Sigmund. Notas sobre um caso de neurose obsessiva (O caso do Homem dos Ratos) (1909). In: FREUD, Sigmund. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 10.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
LACAN, Jacques. Televisão. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.
SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015.