Postado por Daniela Dantas Furlaneto em 28/08/2025 15:03
-TERAPIA NÃO SE CONSOME: O CUIDADO SUBMETIDO À LÓGICA DA PERFORMANCE DIGITAL
É claro que uma primeira sessão precisa ser acolhedora, respeitosa, cuidadosa. Mas um processo terapêutico é muito mais amplo e profundo do que isso.
Nem sempre saímos mais leves ou motivados. Muitas vezes, saímos mais angustiados, com mais dúvidas do que certezas — e isso não é falha. É parte do caminho.
As redes sociais e a lógica da divulgação online moldaram a forma como nos relacionamos com o mercado e com os profissionais. E nesse cenário, os sistemas de avaliação por estrelas que se tornaram padrão em muitas plataformas que divulgam serviços podem se tornar uma armadilha — especialmente para os pacientes. Em tempos de plataformas digitais e avaliações públicas, psicólogos têm enfrentado um novo tipo de vulnerabilidade: a nota atribuída por clientes após uma sessão. Embora o feedback seja uma ferramenta valiosa, é preciso reconhecer que nem toda avaliação reflete, de fato, a qualidade técnica, ética ou relacional do atendimento prestado.
Por exemplo, muitos profissionais já se viram diante de notas baixas ou comentários desabonadores, e isso pode gerar um sentimento de desvalorização injusto — especialmente quando o julgamento é feito sem compreensão do que envolve estar diante de alguém em sofrimento, oferecendo escuta qualificada e presença ética. Ou diante das notas máximas e dos comentários positivos sobre o atendimento ou a postura do profissional, muitos psicólogos acabam se sentindo pressionados a manter esse padrão de aprovação — como quem precisa ser constantemente validado, como quem luta para continuar merecendo amor, devoção e aplausos. Afinal, ninguém quer parecer inadequado aos olhos dos outros. No entanto, na prática clínica, esse receio não pode guiar a conduta do profissional. Psicólogos, por vezes, precisam frustrar expectativas, estabelecer limites, confrontar comportamentos inadequados, dizer verdades difíceis. E quando o paciente não possui maturidade emocional para lidar com esse movimento, é comum que leve para o lado pessoal e reaja com julgamento — inclusive por meio de avaliações públicas que não refletem o cuidado recebido, mas sim a resistência ao processo terapêutico.
Esse cenário se torna ainda mais delicado quando o psicólogo atua em plataformas que avaliam constantemente suas sessões. A lógica da performance e da aprovação contínua pode gerar um conflito ético: o profissional pode se sentir ameaçado ao fazer confrontações necessárias, temendo que sua postura clínica — embora tecnicamente correta — seja mal interpretada e penalizada por avaliações negativas. Isso compromete não apenas a liberdade técnica do psicólogo, mas também a profundidade e a autenticidade do processo terapêutico.
A atuação clínica exige preparo contínuo, supervisão, estudo, autorreflexão e, sobretudo, responsabilidade. Cada sessão é sustentada por um conjunto de decisões técnicas e afetivas que não são visíveis ao cliente, mas que fazem toda a diferença na condução do processo terapêutico. A relação entre psicólogo e paciente é uma construção conjunta, pautada em transparência, confiança e parceria. No entanto, nem todos os clientes compreendem essa dinâmica — e alguns reproduzem na clínica os mesmos padrões que aplicam em outros contextos de consumo.
O que se oferta na clínica não é um produto, nem um serviço que se possa mensurar ou quantificar. Terapia não se consome. Não é uma macarronada à bolonhesa, que está ali para te satisfazer e te preencher, e que você pode reclamar da falta de molho ou do ponto do macarrão. O que o profissional oferece é espaço, escuta, acompanhamento, presença, troca. Mas como isso será “cozido” — os temperos, as sensações, os desconfortos — são frutos do encontro, do que se constroi na vivencia do encontro, do contato com o outro. São da ordem da química, da subjetividade, que vai além das demandas imediatas do paciente. Não há receita pronta. E não há controle possível sobre o que emerge.
A clínica não é palco. O terapeuta não é produto. TERAPIA NÃO É COMÉRCIO. E o paciente não é cliente — é sujeito em processo.
Outro ponto para se levar em conta é que avaliar é uma forma de controle e de poder — e controle não combina com escuta e muito menos com uma relação saudável. É muito grave quando o desconforto do cliente, em vez de ser trazido para o espaço terapêutico — onde pode ser acolhido, elaborado e compreendido — é exposto publicamente em forma de crítica. Essa atitude compromete não apenas a reputação do profissional, mas também a qualidade da própria relação terapêutica. Da mesma forma que seria antiético um psicólogo desqualificar ou expor um paciente em público, também é questionável que o paciente utilize canais externos para expressar insatisfações que deveriam ser trabalhadas dentro do vínculo clínico.
Toda vez que o cuidado é submetido à lógica da avaliação, corre-se o risco de transformá-lo em produto, esvaziando sua potência relacional. Embora pareça inofensiva, a avaliação desloca o centro da clínica: sai o encontro genuíno, entra o julgamento, uma relação de poder onde quem está na mira deveria estar ao lado. Quando o terapeuta atua para agradar para não ser guilhotinado e salvar sua cabeça, o sofrimento do paciente deixa de ser verdadeiramente escutado. Não por culpa do profissional mas pela dinâmica que ele precisa se submeter sem escolha.
Precisamos lembrar que avaliar é medir, e o que se mede, se compara — mas o cuidado não é comparável. A escuta exige entrega, não aprovação.
Por isso, é urgente repensar como os sistemas de avaliação estão sendo aplicados à saúde mental. Porque o que está em jogo não é só reputação profissional. É a integridade da clínica. É a liberdade do encontro. É a possibilidade de que o cuidado continue sendo cuidado — e não performance.É preciso abrir esse debate com seriedade. A ética relacional é uma via de mão dupla. Psicólogos devem seguir rigorosamente os princípios éticos da profissão, mas também merecem respeito, compreensão e diálogo por parte dos clientes e das plataformas compreenderem que profissionais de saúde mental não fazem parte das mesmas categorias de serviços comerciais onde o cliente está ali para ser servido e satisfeito.
A terapia é processo, não performance. É movimento, não espetáculo. É encontro, não entrega de resultado. TERAPIA NÃO SE CONSOME — se constrói. É vivência. É jornada da alma. Por isso, talvez seja hora de nos posicionarmos — enquanto psicólogos, enquanto categoria — diante das plataformas que medem, ranqueiam e expõem nosso trabalho.
Estamos dispostos a negociar nossa liberdade clínica em troca de números?
Ou será que podemos, juntos, construir outras formas de presença digital que respeitem a complexidade do cuidado?
Como você, colega, tem lidado com isso?
Quais caminhos têm encontrado para preservar a ética, a liberdade do encontro e a potência do vínculo terapêutico nesse cenário cada vez mais narcísico e performático?
DANIELA DANTAS FURLANETO
Psicóloga junguiana - CRP 15 7957
Contato: (82) 99832-0949