Erro

Fomos educadas para amar?

Postado por Maria Cecilia Ramalho de Camargo em 13/11/2025 18:02


 

A discussão sobre gênero e saúde mental tem se ampliado de maneira significativa nas últimas décadas, especialmente quando observamos como construções socioculturais impactam subjetividades, autoestima e modos de se relacionar. Nesse cenário, a obra A Prateleira do Amor, da psicóloga e pesquisadora Valeska Zanello, oferece importantes contribuições para compreender a maneira pela qual homens e mulheres são socializados dentro de estruturas específicas de gênero que orientam comportamentos, expectativas e formas de validação social.

Zanello propõe que, desde cedo, homens e mulheres são introduzidos a papéis de gênero historicamente definidos, sendo ensinados explícita ou implicitamente  sobre o que se espera de cada um. Essa construção não é neutra: ela se articula a relações de poder e organiza modos de sentir, agir e se valorizar.

Nesse contexto, a autora apresenta o conceito de dispositivos, compreendidos como engrenagens sociais que produzem determinados tipos de subjetividade. Dois deles se destacam:

  • Dispositivo de eficácia (atribuído aos homens): estrutura-se pela validação a partir da produtividade, racionalidade, conquista e desempenho. A autoestima masculina, portanto, é frequentemente construída em função do reconhecimento de outros homens e da capacidade de cumprir expectativas associadas à força, autonomia e competitividade.

  • Dispositivo amoroso (atribuído às mulheres): direciona mulheres para a centralidade do amor, cuidado e afeto como eixos de valor pessoal. Assim, a autoestima feminina tende a ser construída com base na capacidade de nutrir relações, oferecer suporte emocional e exercer um papel relacional, muitas vezes colocando suas próprias necessidades em segundo plano.

 Impactos subjetivos e assimetrias relacionais

A divisão entre os dispositivos produz consequências distintas para cada gênero e estrutura desigualdades nas relações afetivas. Enquanto homens se beneficiam de validações sociais que não dependem exclusivamente do campo emocional, mulheres, mesmo quando atendem aos padrões sociais e estéticos vigentes, podem ser colocadas em posição de silenciamento diante de seus próprios desejos.

Isso ocorre porque, ao serem responsabilizadas quase exclusivamente pelo cuidado emocional no relacionamento, muitas mulheres:

  • sentem-se obrigadas a manter a harmonia relacional;

  • assumem o papel de reguladoras emocionais do parceiro;

  • internalizam a ideia de que fracassos afetivos são evidências de inadequação pessoal;

  • negligenciam suas necessidades e limites para atender expectativas de acolhimento.

Essa dinâmica reforça desigualdades e limita a possibilidade de relações verdadeiramente recíprocas.

O objetivo não é romper relações, mas transformá-las

É importante destacar que a proposta de Zanello não é desencorajar mulheres a se relacionarem com homens. Pelo contrário, sua análise convida a uma reflexão crítica sobre:

  • quais papéis foram ensinados e naturalizados;

  • quais deles realmente fazem sentido subjetivo para a mulher adulta;

  • como construir relações menos hierarquizadas emocionalmente.

O convite é para que mulheres possam identificar e nomear seus desejos e necessidades, compreendendo que não são responsáveis exclusivas pelo afeto, acolhimento e reparação emocional dentro de uma relação. Relações afetivas saudáveis exigem corresponsabilidade, incluindo divisão de demandas emocionais, materiais e práticas.

Caminhos para relações mais igualitárias

A partir dessas reflexões, alguns elementos tornam-se centrais para construir relações mais equânimes:

  • Autoconhecimento: reconhecer papéis internalizados e identificar o que faz sentido manter ou transformar.

  • Redistribuição emocional: compreender que o cuidado afetivo deve ser compartilhado, não assumido unilateralmente.

  • Assertividade relacional: expressar necessidades, limites e expectativas sem medo de invalidar o outro.

  • Questionamento de normas de gênero: problematizar padrões que naturalizam desigualdades e que organizam o afeto como responsabilidade feminina.

  • Validação mútua: fomentar relações em que ambos os parceiros assumam a construção da intimidade, cuidado e apoio emocional.

Referência: 

A prateleira do amor: sobre mulheres, homens e relações. V Zanello. Curitiba: Appris, 2022.






X

Quer receber novidades?

Assine nossa newsletter!

Precisa de ajuda?